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Exibam os filmes e derrubem as estátuas

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Autor Alexandre Sayad Jornalista e educador Sobre o autor

O racismo sempre diz respeito à educação, quer essa conexão esteja explicita nas mídias, ou não.

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Imagem: Chris Henry/Unsplash

Vidas negras importam. Em uma pizzaria do Brooklin, na Nova York dos anos de 1980, uma parede coberta de retratos de personalidades brancas ítalo-americanas, como Frank Sinatra, é o orgulho de seu dono, também branco. A simbologia é mais que suficiente para que um cliente negro o afronte e exija a presença de seus “manos” naquela parede; afinal, trata-se da sua comunidade também. “Tenha sua própria pizzaria e pendure o que quiser”, esbraveja o dono.

Esse é o estopim para um conflito social-racial dirigido por Spike Lee em “Faça a Coisa Certa” (“Do The Right Thing”), de 1989. O contexto e o ponto de virada do roteiro não poderiam ser mais atuais. A filme revela algumas camadas de compreensão: o retrato do cenário social da época, a semiótica provocativa de uma parede “ariana” a ser contemplada por negros em seu cotidiano, além da própria representatividade negra na tela de cinema, como um elemento crítico.

Vidas negras importam. No que tange a cultura, o movimento atual, que teve seu estopim no assassinato de George Floyd por um policial branco de Minneapolis (EUA), tem derrubado estátuas de apologia escravocrata. E também retirado de circulação obras consideradas racistas, como “E o Vento Levou” (“Gone With The Wind”, de 1939, dirigido por Victor Fleming, George Cukor e Sam Wood). O debate sobre esse diapasão pela comunidade escolar é uma obrigação, e uma oportunidade, para uma educação que pretenda transformar. O racismo sempre diz respeito à educação, quer essa conexão esteja explicita nas mídias, ou não.

Em momentos como esse, a educação formal, de vocação conservadora, deve promover o rompimento. Práticas assim diferenciam as escolas. Estranho o silêncio precoce das vozes que questionavam a falta de alunos negros nas carteiras escolares particulares do Brasil, quando até o universo corporativo mais conservador leva hoje a importância de diversidade aos mais importantes fóruns e políticas. “Com quantos negros meu filho convive na escola, que não os funcionários?” é uma pergunta incômoda, estruturante, e educativa.

Há uma outra questão, que toca no propósito de construção do pensamento crítico: o quanto as escolas preparam os estudantes para assistirem a filmes como “E o Vento Levou” de maneira crítica? A educação midiática, mais precisamente a voltada para as imagens, como Bernardo Toro insistiu em “Códigos da Modernidade”, se faz indispensável. Crianças e jovens estão cada vez mais mergulhados no audiovisual, em experiências imediatistas da internet; compreender a semântica das imagens é fundamental para a leitura do mundo.

Filmes têm potencial para serem analisados como reflexo de um tempo; podem vir acompanhados de material complementar (inclusive textos) que aprofundem o debate cultural e justamente se tornem armas poderosas contra o racismo. Vivemos a mesma questão na tentativa de proibição de Monteiro Lobato. A visão abolicionista de Joaquim Nabuco, que via a escravidão se transformar numa herança cultural subliminar no futuro, é uma ótimo exemplo de intertextualidade. “Faça a Coisa Certa” , por exemplo, pode apresentar aos estudantes uma Nova York que mudou pouco em 30 anos e que tem suas raízes estruturais em “E o Vento Levou”.

Experiências do movimento “cineclubista”, em que alunos e professores exibem filmes seguidos de debate, são exemplos de leituras do cinema em sua complexidade. O cineclube da Escola Viva, em São Paulo, num ato corajoso, desfibrou justamente “E o Vento Levou”, elevando o debate entre ética e estética às últimas consequências. O quanto do filme é mero retrato da época, o quanto é o olhar racista de diretores brancos? Eis uma ótima questão.

Filmes não são estátuas. A estatuária, apesar de arte, representa em muitos casos a edificação ou homenagem feita em espaços públicos. Na queda do Muro de Berlim, elas tombaram simultaneamente, em uma catarse iconoclasta coletiva. Por outro lado, são cicatrizes que nos ajudam a revisitar o passado. Do alto de meu privilégio branco, destruí-las me parece mais compreensível do que abolir a exibição de filmes, prática comum em países que não têm apreço ao debate.

Em outras palavras, o cliente tinha razão: a parede branca da pizzaria de Spike Lee devia mesmo ser derrubada. O filme, como outros, apenas estudado. Já a escola, deve abraçar a diversidade em seu cotidiano, ou o racismo vai continuar sendo apenas tema de aula de cinquenta minutos. Vidas negras importam.

Foto de Alexandre Sayad

Alexandre Sayad

Jornalista e educador

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da consultoria ZeitGeist e membro diretivo da aliança GAPMIL (de educação para a mídia da UNESCO), além de membro do conselho consultivo do projeto Educamídia (do Instituto Palavra aberta e google.org ) .Trabalha há vinte anos com temas de educação para a mídia e inovação. Cursou especialização em negócios pela Universidade da Califórnia / Berkeley e é fundador de três ONGS e duas empresas na área. É autor de livros na área, dentre eles "Idade Mídia - A Comunicação Reinventada na Escola" (Editora Aleph). Mais informações:   alexandresayad.com

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