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Educação e arte contra a vigilância

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Autor Alexandre Sayad Jornalista e educador Sobre o autor

A arte sempre desempenhou um papel fundamental em nos auxiliar a desenvolver o pensamento crítico, inclusive em parceria com a a escola.

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Corpos humanos com cabeças de televisão, as vídeo-criaturas eram personagens que simbolizaram o espírito de uma época. As fantasias, criadas pelo artista plástico Otávio Donasci, davam aos atores ares de bufões tecnológicos quando interagiam com o público durante as performances. O intérprete tinha seu rosto filmado em tempo real sob um pano preto e transmitido por cabos para sua cabeça (o televisor), de maneira distorcida e com áudio da voz. Eram cômicos, irônicos e provocadores, instigavam um olhar crítico sobre a telinha que reinava absoluta na década de 1980, para o horror dos pensadores da Escola de Frankfurt.

 

O exagero era parte do show. Não à toa, as crianças adoravam as vídeo-criaturas que vagavam em foyers de teatros, entradas de cinemas e exposições. Havia explicitamente uma mensagem dupla: a mídia está tomando conta da nossa vida privada; isso exige algum cuidado para que não sejamos engolidos pelo universo da televisão.

 

Olhando sob a lente de 2020, as video-criaturas podem até parecer personagens caricatos de museu. Afinal, de lá para cá fomos submersos em tecnologia, inclusive com avanços impressionantes nos campos da inteligência artificial, realidade virtual e robótica. Interagimos com algoritmos o dia todo, alimentamos sistemas de aprendizagem de máquina com informações pessoais, e somos às vezes até enganados por chatbots quando interagimos com uma janela de atendimento ao consumidor, que jurávamos ser uma pessoa.

 

Mas há algo fundamental na criação de Donasci que fato não envelheceu: as vídeo-criaturas simulavam a fusão de nossa personalidade com a de uma máquina, com contornos pouco claros. Quando preenchemos os formulários de uma compra na internet, ou quando navegamos por sites distraidamente, estamos deixando um pouco de nossa informação pessoal e hábitos de consumo registrados para uso em outras finalidades. Sem percebermos, perdemos, ou melhor, doamos gratuitamente parte da nossa privacidade.

 

Onde vai parar toda essa monumental quantidade de informação, chamada de “big data”? Nos mais diversos locais, de sistemas de crédito bancário, ao banco de dados de lojas virtuais e pode até ser utilizado no aprendizado de robôs que vão desempenhar funções das mais diversas. O lado infantil das vídeo-criaturas parecia chamar a atenção para uma situação que até certo ponto ingênua. Hoje, de certo, deixou de ser.

 

A questão dá ética frente às tecnologias e à privacidade nos remete imediatamente ao banco de faces e corpos que um sistema de câmeras de segurança pode armazenar. Quem detém o direto daquelas imagens? No campo da educação formal, dúvidas  e desafios não param de aparecer. Como enfrentar o desafio da cidadania se caminhar pelas ruas de uma grande cidade, mesmo sem celular, exige atenção a essas questões?

 

A arte sempre desempenhou um papel fundamental em nos auxiliar a desenvolver o pensamento crítico, inclusive em parceria com a a escola. Nesse sentido, o artista norte-americano, e também ativista digital, Adam Harvey, têm ousado esticar nossas percepções do que enxergamos com realidade e privacidade. De seu atelier em Berlim (Alemanha), desenvolve projetos ligados à imagem computacional, inteligência artificial e vigilância tecnológica nos provocando sobre nossa consciência sobre o que acontece com nossos dados e imagem hoje.

 

Harvey chacoalhou o mundo das arte digitais quando criou a série CV Dazzle. Partindo do princípio que somos vigiados constantemente, e que é difícil driblar a tecnologia por mais que exista legislação para nossa proteção, ele desenvolveu uma série de maquiagem facial que engana o reconhecimento por sistemas de segurança.

 

Em certos momentos, o artista cultiva o mesmo humor infantil de Donasci, como ao desenvolver um dispositivo que consiste em um “flash” anti-paparazzi que dispara quando alguém (ou alguma máquina) não autorizada decide fotografar uma pessoa, ofuscando-o com a contra-luz (que chamou de “Camuflash”). Num passo mais ousado, o “DataPool” é um sistema que  se utiliza da coleta de dados para recriar as “piscinas” das mansões de empresários da área de tecnologia do Vale do Silício (Estados Unidos) que, em geral, retiram de apagam propositalmente suas propriedades de sistemas de GPS como Google Maps. Segundo o artista, em sua página pessoal, “as piscinas foram construídas com os recursos de nossos dados pessoais, usamos a mesma ferramenta para recriá-las e termos acesso a elas”.

 

Enquanto sociedade, não chegamos ainda em no estado da “singularidade tecnológica”, quando a diferença entre homem e máquina se tornam imbricados e irreversíveis, seguido as previsões do pesquisador John von Neumann, na década de 1950. Entretanto, lidar com uma realidade cujas fronteiras começam a ficar sem um contorno definido, exige imediatamente que as gerações atuais estejam preparadas eticamente, com uma série de habilidades específicas.

 

Isso inclui um trabalho extensivo na chamada educação midiática, tanto nas escolas e seus currículos, quanto fora delas. A importância de artistas como Donasci e Harvey é servir como farol; nos alertar, por metáforas e poesia, o que a realidade nua e crua do mercado e do governo parece intencionalmente querer passar despercebida por nós.

Foto de Alexandre Sayad

Alexandre Sayad

Jornalista e educador

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista e educador, diretor da consultoria ZeitGeist e membro diretivo da aliança GAPMIL (de educação para a mídia da UNESCO), além de membro do conselho consultivo do projeto Educamídia (do Instituto Palavra aberta e google.org ) .Trabalha há vinte anos com temas de educação para a mídia e inovação. Cursou especialização em negócios pela Universidade da Califórnia / Berkeley e é fundador de três ONGS e duas empresas na área. É autor de livros na área, dentre eles "Idade Mídia - A Comunicação Reinventada na Escola" (Editora Aleph). Mais informações:   alexandresayad.com

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